Morreu Ary Barroso

Lembro-me perfeitamente de Ary Barroso. Conservo-lhe a fisionomia, desde o início de minha juventude. Conheci-o num teatro em Paraíba do Sul, em dia de festa. A coisa passou-se mais ou menos assim. Minha família morava na pequena vila de Bemposta, entre as localidades de Areal e Anta. Um dia, correu a notícia de que Ary Barroso iria realizar em Paraíba do Sul uma audição de seu famoso programa de calouros. Meninos ainda, alvoroçamo-nos todos. E tamanha foi a pressão que exercemos sobre o velho Hermenegildo, patriarca da família, que ele logo se animou a movimentar seu estimado «Chevrolet». E lá fomos, com grande animação.
Aventou-se então a possibilidade de um da família enfrentar o célebre gongo do «Macalé». Foi quando meu irmão. Antônio, que viria mais tarde seguir a carreira – radiofônica, tranquilizou-nos a todos nós. — «Eu me inscreverei» — ponderou ele na sua jovialidade provinciana. «Vou cantar a Patativa, do Vicente Celestino.
Nagib, o caçula dos homens, também se animou e prometeu cantar a Sertaneja, do Orlando Silva. O menos animado fui sempre eu. Cedo compreendi que não ganharia um centavo sequer à luz da ribalta, O certo é que, à chegada do teatro fomos informados de que já se encontravam encerradas as inscrições. Procurado por meu irmão Antônio, Ary Barroso comprometeu-se, entretanto, a chamar os aventureiros, após a apresentação do último calouro inscrito.
Realmente, antes de encerrar o programa, Ary Barroso perguntou à plateia: «Há por aí mais alguém que queira enfrentar o gongo?» — Meu irmão Antônio levantou-se resoluto e disse: «Eu quero» — «Pois então suba, menino», exclamou o Ary. E foi assim que o BillFarr deu o primeiro passo, protegido pelas mãos do velho Ary Barroso, no sentido do Rádio, de que só há pouco se afastou, para ingressar na carreira diplomática.
No Rádio, sempre foram ótimos amigos: o padrinho e o afilhado e sempre constituiu, por outro lado, motivo de especial sabor a revivescência deste episódio para a vida de ambos.
Pois o velho Ary Barroso, compositor dos mais notáveis, fechou há três dias os olhos à luz. Depois de se haver notabilizado como narrador desportivo, compositor, pianista, animador de um famoso programa de calouros, despediu-se da vida em pleno Carnaval. Suas bonitas músicas, sempre muito bem trabalhadas, já se fixaram na alma popular. Aquarela do Brasil, Camisa Amarela, Na Baixa do Sapateiro, No Tabuleiro da Baiana, Boneca de Pixe, Terra Seca, Risque, As Três Lágrimas, Iaiá Boneca, Casta Suzana, etc. Seria longo recordar aqui todas as suas bonitas e populares composições. Mais do que qualquer palavra, o testemunho de carinho com que foi envolvido depõe com maior eloquência. Foi um verdadeiro ídolo, no esporte e no Rádio. Por isso mesmo, pôde e soube fazer amigos, que o não esquecerão.
Houve uma época em que todo mundo só queria ouvir as narrações desportivas, através do Ary. Por mais que ele torcesse pelo Flamengo, ninguém o dispensava. Sua gaita tinha o condão de anunciar um grande feito dos contendores. Era o sinal de queda de uma cidadela. E se o «goal» favorecia o Flamengo, sua modulação era mais trabalhada. Depois, com o caminhar da idade, afastou-se do Esporte, deixou o programa de calouros e parece que desertou até mesmo de compor. Ainda assim, manteve acesa a flama do entusiasmo por todas as atividades a que serviu.
Morreu Ary Barroso! E morreu em pleno Carnaval, para mostrar ao mundo que o maior compositor de músicas populares do Brasil terá de viver sempre na alma do povo, cuja inspiração ele soube interpretar, melodiosa contextura de seus versos.
Ary Barroso!
Todo o Brasil se volta em preces, para acompanhar-te a alma generosa, que sobe ao Céu!